sexta-feira, 24 de setembro de 2010
O Auto da Compadecida - Opinião
Quando iam saindo da igreja Chicó e J. Grilo viram Antônio indo para igreja. João se aproximou e avisou que o padre estava ficando louco chamando a todos de cahorro, para que ele não reparasse. Quando Antônio entrou na igreja logo o padre veio recebê-lo, como ele queria que a filha dele fosse benzida não houve confusão no início da conversa até que o padre referiu-se a cachorros e assim ofendeu a Antônio que disse que iria falar com o bispo sobre a groceria do padre.
Assim que ele saiu chegou na igreja o padeiro e sua mulher, João Grilo e Chicó. Xáreu acabava de morrer e a mulher queria que o cachorro fosse enterrado em latim. O padre e o sacristão não concordaram, mas João que podia agir como quisesse para conseguir o enterro logo inventou que o cachorro era cristão e em troco do enterro deixava dez contos de réis para o padre e três para o sacristão. E assim o enterro foi feito.
Foi então que a muher chegou trazendo o dinheiro para que João o entreguasse ao pessoal. Quando ela estava indo embora J. Grilo lhe ofereceu um gato que “descomia” dinheiro. A mulher ficou animada e comprou o gato, mas logo que foi embora voltou como marido, pois já tinha arrancado do gato todo o dinheiro que Chicó tinha infiado no pobre animal.
Para demostrar a eficiência da gaita João deu uma facada em Chicó e lhe furou uma bexiga de bode cheia de sangue que a um tempo atrás Chicó havia pindurado em si por baixo da blusa. Logo depois começou a tocar a gaita e Chicó fez que havia ressucitado.
Chicó correu pra fora da igreja, João ainda foi até Severino e pegou o dinheiro do enterro e o da padaria. O capanga que ainda não havia morrido, pegou o rifle e em seu último minuto deu um tiro em J. Grilo.
Quando acordou viu Chicó e um palhaço o enterrando, quando ele levantou o palhaço saiu correndo e Chicó de tanto medo nem conseguiu correr. Depois de uma pequena confusão João conseguiu fazer seu amigo acreditar que ele estava vivo. Os dois então se animaram afinal estavam ricos com o dinheiro do enterro e o do padaria que o cangaceiro havia roubado.
ARIANO SUASSUNA - O AUTO DA COMPADECIDA - resumo e análise
Em linhas gerais, o teatro recebe um impacto muito maior dos condicionamentos de um dado momento histórico, do que, por outro lado, recebe a literatura. Esses impactos se refletem na temática, no tratamento do assunto, nas técnicas propriamente teatrais (cenarização, cenografia, ritmo, iluminação, etc.). Por outro lado, uma peça teatral pode descobrir motivos de criação em outras modalidades essas que podem ou não interessar à Literatura.
1- O texto propõe-se como um auto. Dentro da tradição da cultura de língua portuguesa, o auto é uma modalidade do teatro medieval, cujo assunto é basicamente religioso. Assim o entendeu Paula Vicente, filha de Gil Vicente, quando publicou os textos de seu pai, no século XVI, ordenando-os principalmente em termos de autos e farsas.
3- A síntese de um modelo medieval com um modelo regional resulta, na peça, como concebida pelo Autor. Se verificarmos que as tendências mais importantes do Modernismo definem-se no esforço por uma síntese nacional dos processos estáticos, poderemos concluir que o texto do Auto da Compadecida se insere nas preocupações gerais desse es tilo de época, deflagrado a partir de 1922, com a Semana de Arte Moderna, em São Paulo. Um modelo característico dessa síntese se encontra em Macunaíma, de Mário de Andrade, de 1927, e em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa (1956), entre outros.
A ESTRUTURA DO AUTO DA COMPADECIDA
· As demais personagens compõem o quadro de cada situação.
a) JOÃO GRILO. A dimensão de sua importância surge logo no início da peça quando as personagens são apresentadas ao público pelo Palhaço. Apenas duas personagens se dirigem ao público. Uma, a chamado do Palhaço, a atriz que vai representar a Compadecida, e João Grilo.
JOÃO GRILO: Ele diz "à misericórdia", porque sabe que, se fôssemos julgados pela justiça, toda a nação seria condenada" (p.24).
5ª) a gaita que fecha o corpo e ressuscita. JOÃO GRILO: "Mas cura. Essa gaita foi benzida por Padre Cícero, pouco antes de morrer" (p.122).
7ª) o julgamento pelo Diabo (o Encourado). JOÃO GRILO: "Sai daí, pai da mentira! Sempre ouvi dizer que para se condenar uma pessoa ela tem de ser ouvida!"(p.144).
Que é João Grilo?
· Habituado a sobreviver e a viver a partir e expedientes, trabalha na padaria, vive em desconforto e a miséria é sua companheira.
d) ANTÔNIO MORAIS. É a autoridade decorrente do poder econômico, resquício do coronelismo nordestino, a quem se curvam a política, os sacerdotes e a gente miúda.
f) SEVERINO DO ARACAJU e o CANGACEIRO. Representam a crueldade sádica, e desempenham um papel importante na seqüência de número cinco, porque nessa seqüência matam e são mortos. Com isso propicia-se a ressurreição e o julgamento.
Ao lado da significação global do texto, como estrutura, o Palhaço define essa proposição claramente.
O Palhaço realiza, nessa peça, o papel do Corifeu, no teatro clássico, e sua intervenção corresponde à parábase da comédia clássica - trecho fora do enredo dramático em que as idéias e as intenções ficam claramente expressas:
A intenção moral, ou moralidade da peça, fica muito clara, desde que se torne claro, também, que essa intenção vincula-se a uma linha de pensamento religioso, e da Igreja Católica.
Matheus Nachtergaele...Jõao Grilo
Selton Mello...Chicó
Lima Duarte...O Bispo
Rogério Cardoso...Padre João
Denise Fraga...Dora
Diogo Vilela...Padeiro Eurico
Maurício Gonçalves...Jesus Cristo
Marco Nanini...Severino de Aracaju
Luis Mello...Diabo
Paulo Goulart...Major A.Moraes
Virginia Cavendish...Rosinha
Bruno Garcia...Vicentao
Enrique Díaz...Cangaceiro
Aramis Trindade...Cabo Setenta
segunda-feira, 2 de agosto de 2010
Adeus Lenin
quarta-feira, 7 de abril de 2010
Feios, Sujos e Malvados
terça-feira, 6 de abril de 2010
Ettore, cineasta da melhor escola
Com outro de seus atores favoritos, o comediante Nino Manfredi, fez um drama social pungente, embora em ritmo bem humorado - "Brutti, Sporchi e Cativi" (Feios, Sujos e Malvados, 1975). Nos anos 80, após "Um Dia Muito Especial", Scolla fez experiências diversas: o mergulho crítico ha história ("Casanova e a Revolução", novamente com Mastroianni), um filme sem diálogos, num mesmo cenário ("O Baile"), uma crônica de 80 anos na vida de uma família, também num único cenário ("A Família", 1986), além da comédia (que permanece inédita) "Maccharoni", 1985, reunindo Mastroianni e Jack Lemmon.
No ano passado, Scolla voltou às telas com "Chere Orea É?", adivinhem com quem: Mastroianni, é claro.
Para muitos seu melhor momento foi "Nós que Nos Amávamos Tanto", 1974, no qual reuniu um superelenco - Gassman, Manfredi, Mastroianni, Aldo Fabrizi, Stefania Sandrelli e até, num papel pequeno mas importante, Frederico Fellini.
Feios, sujos e malvados
Em algumas seqüências de "Feios, Sujos e Malvados" alguns espectadores ensaiam risos. Mas parece não chegar a contaminar histrionicamente a ninguém. Ao contrário, há uma sensação de sufoco, de angústia, frente a imagens tão brutais, chocantes como a que Ettore Scola coloca neste filme denso e pesado, um documento amargo de nossos dias. "Feios, Sujos e Malvados" não é uma comédia, muito menos um filme agradável. Ao contrário: é desagradável a quem busca o belo, o colorido, o alienado. Mas é fascinante, série e importante - sem dúvida um dos melhores filmes do ano - para quem sabe exigir do cinema uma participação social. Com Scolla, o cinema italiano reassume a linha social que tão bem marcou o Neo-Realismo. Aliás, pode-se classificar "Feios, Sujos e Malvados" como um filme neo-realista - assim como o magnífico "Eles Não Usam Black-Tie" (cine Plaza, 4a semana) é também, a sua maneira, um filme neo-realista brasileiro - que reata as relações que Nelson Pereira dos Santos propunha há 27 anos passados em seu "Rio, 40 graus".
Focando toda ação numa família de favelados de Roma, "Brutti Sporchi e Cattivi" - que valeu a Scolla o prêmio de melhor diretor do festival de Cannes, há 5 anos - demorou para chegar. Suas imagens são contundentes e a realidade que espalha não são mera coincidência com o Brasil ou qualquer outro país subdesenvolvido. Aliás, por uma destas coincidências, o curta-metragem que o antecipa, sobre a vida do cientista Carlos Chagas, focaliza na última seqüência uma favela do Rio de Janeiro. Os casebres no alto - sobre a grande cidade. Momentos depois, é a favela de Roma - com suas habitações improvisadas, sujas, poluídas - em contraste com as cúpulas dos edifícios do Vaticano - vistas à distância, mas não tão distante que não passem a ironia e a crítica.
Scolla, um cineasta italiano de formação política vigorosa e cujo "La Terraza" (programado para o Brasil) venceu o festival de Cannes, há dois anos, não situa-se de forma panfletária ou maniqueísta em seu filme. Todos os personagens de "Feios, Sujos e Malvados" são colocados em seu deserdamento social, marginais da vida e convivendo animalescamente. A família de 15 pessoas que habita um casebre de duas peças, o patriarca (magnífica interpretação de nino Manfredi, possivelmente sua melhor atuação) que os humilha, a ganância pelo dinheiro, a entrada em cena da prostituta - uma presença felliniana, constituem - ganchos - para que, pouco a pouco, vários aspectos sociais sejam revelados/discutidos, mas sempre com uma consciência crítica - sem cair na separação de "bons" e "maus". Ao contrário, todos os personagens se apresentam , tal como o título - "Feios, Sujos e Malvados". Talvez a única exceção seja a personagem que abre e fecha o filme: a menina de botas amarelas que ao amanhecer na favela sai para apanhar água na bica comum. No final, a sua gravidez indica que a miséria, a luta pela sobrevivência, a sordidez terá seqüência naquele mundo sórdido, triste, marginalizado - mas admitido pela sociedade capitalista.
Com exceção de Nino Manfredi, não há atores ou atrizes conhecidos. Mas todos têm excelentes atuações, compondo tipos nauseantes em certos momentos (a seqüência em que se planejar a morte do velho pai, com o contraste da carne crua sendo devorada, é quase escatológica), mas que não poderiam aparecer de outra forma. Afinal, "Feios, Sujos e Malvados" não é um filme sobre ambientes sofisticados, romances cor-de-rosa e happy end. É cru, duro, violento como a vida - o que é mostrado nas imagens e na sua emocionante trilha sonora, de Armando Trovajolli.
Um filme marcante e inesquecível. Que merece ser visto por quem sabe apreciar o cinema com algo mais do que simples entretenimento.
domingo, 21 de março de 2010
O genocídio de Ruanda
Reprodução
Dois filmes recentes tratam da matança dos tútsis em 1994, em que mais de 800 mil pessoas foram mortas, sob o olhar indiferente do mundo
“Todos os grandes personagens viraram as costas para nossos massacres. Os boinas-azuis, os belgas, os diretores brancos, os presidentes negros, as pessoas humanitárias e os cinegrafistas internacionais, os bispos e os padres, e finalmente até Deus.” A constatação é de Élie Mizinge, um dos assassinos confessos hútus que participaram do massacre em Ruanda.
O depoimento deste e de outros nove hútus que pegaram em facões e porretes a fim de exterminar a etnia tútsi está no livro “Uma temporada de facões: relatos do genocídio em Ruanda”, do jornalista francês Jean Hatzfeld, lançado no Brasil em 2005. O autor teve longas conversas com os entrevistados na penitenciária de Rilima, onde todos cumprem pena pelos crimes cometidos durante o massacre.
Sete deles eram jovens amigos de colégio, encontravam-se nos cabarés de Kibungo, região pantanosa próxima à capital Kigali e trabalhavam juntos na lavoura. Impressiona a ferocidade e a franqueza dos relatos. “Primeiro, quebrei a cabeça de uma velha mamãe com uma porretada. Mas, como ela já estava deitada no chão, meio agonizante, não senti a morte em meus braços. Voltei para casa de noite sem nem pensar nisso”, revela no livro um dos matadores hútus.
As atrocidades aconteceram há 12 anos -os ataques começaram nos primeiros dias de abril de 1994-, e não houve qualquer tipo de intervenção de órgãos de segurança mundial. As tropas da ONU pouco fizeram e mantiveram postura omissa quanto à possibilidade de salvamento das vítimas.
Keir Pearson, roteirista do filme “Hotel Ruanda”, declara no material extra do DVD (disponível no Brasil a partir 20 de abril): “Quando comecei a pesquisar o assunto o que me espantou foi que a ONU sabia o que estava acontecendo, foi alertada, mas houve um esforço consciente do Ocidente em ignorar”. No filme, uma cena simboliza bem a impotência das tropas diante da milícia extremista hútu Interahamwe, que comandou a ofensiva contra os tútsis.
Integrantes hútus, amontoados no caminhão e empunhando facões, chegam perto do hotel Mille Collines, onde o protagonista Paul Rusesabagina (Don Cheadle) abriga órfãos e tútsis ameaçados pela matança. Em frente ao portão de entrada, está o coronel Oliver (Nick Nolte) com soldados boinas-azuis da ONU. Os milicianos ficam cara a cara com o coronel e gritam palavras de ordem. Para intimidar, jogam fora do caminhão um capacete azul manchado de sangue com a inscrição “United Nation”. Oliver apenas acompanha de longe a arruaça promovida por eles.
Outra tentativa de voltar os olhos ao massacre ignorado à época é o filme “Shooting dogs”, do diretor escocês Michael Caton-Jones, que estreou recentemente em Londres e já tem contrato fechado com a distribuidora Imagem Filmes para ser lançado no Brasil em agosto deste ano. Assim como “Hotel Ruanda”, a ação desenrola-se em um lugar real que serviu de abrigo aos acossados tútsis: a escola secundária Ecole Technique Officielle, com sede em Kigali.
O padre católico inglês Christopher (interpretado pelo ator John Hurt) e um jovem professor tentam a qualquer custo evitar as matanças na capital Kigali e proteger mais de 2.500 tútsis e hútus moderados que são perseguidos pelas milícias extremistas. Mais uma vez, é realçado o caráter de desamparo das vítimas. Quando chegam as tropas francesas à capital, a ordem é clara: só serão resgatados os estrangeiros brancos. Nas horas seguintes à partida dos soldados, a grande maioria dos abrigados da escola é brutalmente assassinada.
“Eu decidi que, mesmo com dificuldades, nós tínhamos que rodar o filme em Ruanda e filmar na Ecole Technique Officielle. E devíamos também fazer o filme com os sobreviventes do genocídio. Eles precisam contar suas histórias”, disse o diretor Caton-Jones. A equipe viajou ao país e passou cinco meses até terminar as filmagens em Kigali. Muitos ruandeses participaram do projeto, como Maggie Kenyama que serviu como assistente de direção. Ela perdeu a irmã durante o massacre e até hoje procura pelo corpo.
“Shooting dogs” teve sua estréia mundial em Kigali. Mais de 1.500 pessoas, dentre elas alguns sobreviventes do genocídio e participantes da produção, foram ao estádio Amahoro, na capital de Ruanda, assistir à primeira exibição do filme. Apesar de gerar discórdias por reavivar memórias de um episódio ignominioso, o presidente ruandês, Paul Kagame, mostrou-se satisfeito. “Filme como este ficará como parte de nossa memória relacionada ao genocídio, e eu acho que a memória precisa ser guardada”, disse.
Em busca de respostas
A atenção voltada ao massacre de Ruanda, mesmo que tardiamente, pretende resgatar parte da história que havia sido ignorada e também busca questionar a motivação de uma matança sem precedentes na história mundial contemporânea. Os dois filmes em questão, “Hotel Ruanda” e “Shooting dogs”, não encerram o assunto nem estão a serviço de uma tese esclarecedora das ações. No entanto, cumprem o papel de tocar na ferida e açular reflexões.
No começo de “Hotel Ruanda”, o operador de câmera de uma emissora de televisão, Jack Daglish, interpretado por Joaquim Phoenix, puxa conversa no bar com um jornalista renomado de Kigali, interpretado por Mothusi Magano. Ele pergunta “qual a verdadeira diferença entre um hútu e um tútsi”. O jornalista responde que “segundo os colonos belgas, os tútsis são mais altos e elegantes” e, por fim, diz: “Foram os belgas que criaram essa divisão”.
Na tentativa de encontrar no passado alguma resposta que possa elucidar esse conflito entre as etnias, o jornalista francês Jean Hatzfeld, autor do livro “Uma temporada de facões”, alerta para a revolução popular de 1959 que resultou na independência do país em 1962. Foi uma revolta camponesa hútu que derrubou a aristocracia tútsi e aboliu a servidão. Os líderes dessa insurreição aproveitaram a situação para marginalizar a comunidade tútsi, formada por camponeses, funcionários e professores.
Sob o domínio dos hútus, os tútsis passaram a ser apontados como pérfidos e parasitas num país superpovoado. Em 1973, com o golpe do major Juvénal Habyarimana, a autonomia de administração hútu consolidou-se e gerou bastante desconforto à população tútsi. Ficou instituído o confisco de bens, o deslocamento da população, a fim de isolar o inimigo, além de ter sido aprovada uma lei de proibição de casamentos mistos entre as duas etnias.
O estopim que pareceu deflagrar definitivamente o conflito aconteceu em 6 de abril de 1994, quando o presidente hútu de Ruanda, Habyarimana, foi morto após a explosão do seu avião. Imediatamente a autoria do atentado recaiu sobre os tútsis. A matança iniciou-se na mesma noite na capital Kigali. O resultado seria um total de 800 mil pessoas –entre tútsis e hútus moderados– mortas em 12 semanas.
Nos depoimentos dos matadores entrevistados por Hatzfeld no livro, tende-se a pensar numa ação premeditada e anterior à morte do presidente. “Em 1991, nos jornais militares o tútsi era apontado como o inimigo natural do hútu que precisava ser eliminado definitivamente. Estava escrito em letras garrafais na primeira página. Com o tempo, o alvo foi sendo pouco a pouco difundido nas estações de rádio”, disse um dos hútus que participaram da matança.
Não à toa as primeiras falas do filme “Hotel Ruanda” são ameaças veiculadas numa estação de rádio. Segundo Hatzfeld, as mensagens transmitidas por rádio tiveram papel fundamental para inflamar os ânimos dos assassinos. “Nos estúdios das rádios populares, como a Rádio Ruanda ou a Rádio Mil Colinas, os tútsis são chamados de ‘baratas’. Apresentadores famosos, como Simon Bikindi e Kantano Habimana, pregam abertamente a destruição dos tútsis”, escreveu o autor.
Até o fim do massacre, por volta de 14 de maio, os hútus, acostumados ao trabalho árduo nos bananais e nos cafezais, haviam trocado as atividades pela rotina de matar diariamente. Como declaram no livro de Hatzfeld, era uma tarefa mais lucrativa, que trazia fartura para dentro de casa, pois não se preocupavam mais com a seca e as colheitas perdidas e acumulavam bens com as pilhagens.
Mesmo os hútus moderados, que não compartilhavam da idéia do genocídio, sofreram ameaças por não colaborarem e alguns foram mortos. Muitos desertores tinham de pagar multas em dinheiro ou eram obrigados a matar como forma de provar sua fidelidade às autoridades policiais. É o que ocorre, em certo momento do filme “Hotel Ruanda”, com o personagem Paul Rusesabagina, cuja esposa era tútsi.
Ele implora a um oficial do exército hútu para não matar sua mulher e outros vizinhos tútsis que estão jogados no chão. O militar oferece-lhe a arma e ordena: “atire neles”. Paul diz que não sabe usar armas e promete retribuir com dinheiro, caso o oficial deixe os amigos em paz. “Quem hesitasse em matar, por causa de sentimentos de tristeza, tinha de disfarçar suas palavras a todo custo e não dizer nada sobre a razão de sua reticência, sob pena de ser acusado de cumplicidade”, disse Pio Mutungirehe em depoimento no livro de Hatzfeld.
Por mais que o autor e jornalista francês tenha se lançado numa obsessão a fim de compreender o genocídio em Ruanda -é seu segundo livro sobre o assunto-, as respostas parecem escorregar entre seus dedos. Um dos entrevistados, Joseph-Désiré Bitero, respondeu-lhe: “A fonte de um genocídio o senhor jamais verá, está enterrada bem fundo nos rancores, sob um acúmulo de desentendimentos dos quais herdamos o último. Chegamos à idade adulta no pior momento da história de Ruanda, fomos educados na obediência absoluta, no ódio, fomos entupidos de fórmulas, somos uma geração sem sorte”.
.
É jornalista.
sábado, 20 de março de 2010
Hotel Ruanda - O Schindler africano
É inevitável que ao assistir Hotel Ruanda façamos uma comparação com o premiado e cultuado filme A Lista de Schindler, do diretor Steven Spielberg. Há evidentes pontos de encontro especialmente no que se refere aos personagens principais e ao clima de catástrofe reinante nos países em que acontece a ação. O que também impressiona muito aos espectadores é saber que as histórias apresentadas nas telas são reais e que o todo aquele sofrimento aconteceu...
Guardadas as devidas proporções históricas, há um outro pormenor que pode ser percebido pelo público. Trata-se da forma diferenciada como os dramas da vida real foram tratados pela mídia internacional e pelos governantes dos países mais ricos do mundo. Na 2ª Guerra Mundial, ainda que de forma tardia, os países foram entrando no conflito e se posicionando contra a tirania e as violências praticadas pelos nazistas.
Mobilizados pelo poder econômico da comunidade judaica do mundo todo, os principais órgãos noticiosos do planeta foram informando a população mundial das atrocidades de guerra cometidas pelos seguidores de Adolf Hitler. Após o cessar fogo e os tratados de paz, a memória do holocausto foi sendo recuperada e se tornou tema de museus, estudos, pesquisas, livros, filmes,...
O massacre da população de Ruanda, um pobre país exportador de chá e café, localizado na região central do continente africano, ex-colônia da Bélgica, não foi capaz de movimentar a imprensa internacional. Calcula-se que aproximadamente um milhão de pessoas tenha morrido na guerra civil que abateu o país em 1994 e praticamente nada a respeito do assunto foi divulgado para os países do Ocidente.
O descaso foi tão grande em relação a Ruanda que as tropas de paz da ONU (Organização das Nações Unidas) foram retiradas do país e recomendou-se que não interviessem nos embates entre hutus e tutsis (as etnias locais que disputavam o controle político do país).
A diferença quanto ao interesse internacional em relação aos dois acontecimentos também fica evidenciada pela repercussão quanto aos dois filmes. O investimento, a divulgação, a quantidade de salas de cinema, os números relativos ao lançamento do filme em vídeo e DVD, as vendas de ingressos e cópias da produção de Spielberg foram gigantescas quando comparadas com os resultados obtidos por Hotel Ruanda.
Isso não quer dizer que um filme seja necessariamente melhor do que outro. Tanto é assim que o reconhecimento por parte do público e da crítica foi ótimo em ambos os casos. Isso nos permite afirmar, com certeza, que Hotel Ruanda, do diretor Terry George, é uma daquelas pequenas e muito brilhantes pérolas que ocasionalmente são lançadas pelo cinema.
Trata-se de um filme de grandes qualidades e que, entre todas elas, tem como seu maior trunfo levar o grande público a refletir sobre as desgraças que afligem o continente africano e a verdadeiramente se sensibilizar e mobilizar-se em favor de maior justiça, paz e harmonia no mundo em que vivemos.
O Filme
Paul Rusesabagina (Don Cheadle, indicado ao Oscar pelo papel) é gerente do hotel Milles Collines em Ruanda. Esse estabelecimento recebe hóspedes do mundo todo e é muito conceituado pela qualidade de seus serviços e acomodações. Trata-se, evidentemente, de um hotel de luxo. Apesar de trabalhar nesse ambiente rico e privilegiado e também de ter uma vida confortável numa casa de bom padrão, Paul vive num país a beira do caos, uma autêntica bomba relógio prestes a explodir...
Seu país é uma ex-colônia belga dividida entre duas etnias, os hutus e os tutsis. Avesso aos problemas políticos, Paul é uma pessoa muito bem informada quanto às pendências e disputas por trabalhar num dos locais onde se reúnem autoridades locais e internacionais que discutem o futuro de Ruanda. Pelos corredores de seu hotel circulam diplomatas, políticos, generais, representantes das Nações Unidas, investidores estrangeiros e turistas.
O hotel Milles Collines, em virtude de sua importante clientela internacional, torna-se então um local relativamente protegido contra os abusos e violências praticados na guerra. Quando estoura o conflito muitas pessoas (tanto da população local quanto estrangeiros que estão no país) buscam refúgio no estabelecimento gerenciado por Rusesabagina.
É nesse momento que se revela a grande história que movimenta o filme e que sensibiliza os espectadores, Paul recebe os refugiados e se torna protetor de todos aqueles que estão escondidos no Milles Collines, inclusive sua mulher e filhos.
Hotel Ruanda é um filme que tem como temática central a humanidade de seu personagem principal. Paul Rusesabagina é um daqueles anônimos heróis do cotidiano que, a despeito de qualquer glória que possam atingir, age movido pelo coração e pela fé apesar do medo e das ameaças que sofre. Numa atmosfera em que a morte ronda a todos (há milhares de corpos de vítimas inocentes jogados pelas ruas e rios da região), era preciso ter muita coragem e dignidade para enfrentar as hostilidades e é nesse quesito que a história contada em Hotel Ruanda conquista espectadores no mundo inteiro...
Para Refletir
1- Em uma das cenas mais importantes do filme Hotel Ruanda, o jornalista Jack Daglish (interpretado por Joaquin Phoenix) volta das ruas com fortes imagens do horror da guerra. Inúmeros mortos espalhados pelo chão enquanto as violentas ações continuam aparecem nas filmagens mostradas pelo repórter ao chefe de sua equipe e são também vistas por Paul Rusesabagina. Preocupado com a reação do gerente do hotel, Daglish se desculpa e Paul responde que acha importante que a comunidade internacional saiba dos acontecimentos em Ruanda para que se mobilize. A resposta do jornalista é então sintomática quanto à repercussão desses ocorridos quando ele diz que as pessoas verão isso enquanto jantam, se sentirão sensibilizadas e, depois de alguns segundos de indignação, retornarão as suas refeições... De que forma podemos superar essa tão evidente indiferença? O que pode ser feito para que não fiquemos apenas pasmos com os acontecimentos e imobilizados em nossas ações? Conversem com seus alunos. Discutam o tema. Busquem respostas em enquetes através da Internet ou entrevistas. Leiam sobre o assunto. Algo tem que ser feito em situações como essa...
2- A África é um continente esquecido e abandonado, em especial os países que não dispõem de petróleo, ouro, diamantes ou outros produtos de grande interesse comercial. Destruída por guerras em certas regiões, padecendo com epidemias de grandes proporções (como a Aids), sofrendo com as guerras pelo poder e a ambição desmedida de líderes corruptos e despóticos, o berço da humanidade foi deixado a sua própria sorte, sem amparo e projetos de recuperação por parte da comunidade internacional. Seria interessante propor um grande projeto de pesquisa sobre a África que levasse os estudantes a entrar em contato com embaixadas, trocar informações pela Internet com pessoas de nações africanas, levantar dados pela rede mundial de computadores, buscar livros sobre o tema, assistir outros filmes,...
3- O humanitarismo percebido nas ações de Paul Rusesabagina não pode ser desprezado como tema a ser trabalhado em aulas e debates sobre o filme. Carecemos de mais exemplos de solidariedade, dignidade, coragem e ética. Vivemos num mundo onde os escândalos parecem prevalecer, a corrupção endêmica tomou conta de vários países (até mesmo do nosso), a violência grassa vidas sem que os outros se sensibilizem e a desonestidade é a regra e não a exceção. Trabalhar valores, respeito e despertar os jovens para uma vida mais engajada em favor da justiça e da harmonia no mundo é tarefa urgente e importantíssima da escola e da sociedade.
Ficha Técnica
Hotel Ruanda
Título Original: Hotel Rwanda
País/Ano de produção: EUA/Itália/África do Sul, 2004
Duração/Gênero: 121 min., Drama
Direção de Terry George
Roteiro de Keir Pearson e Terry George
Elenco: Don Cheadle, Desmond Dube, Hakeem Kae-Kazim,
Tony Kgoroge, Neil McCarthy, Nick Nolte, Sophie Okonedo,
Joachin Phoenix, Fana Mokoeda.
Links
-http://www.adorocinema.com/filmes/hotel-ruanda/hotel-ruanda.asp
- http://epipoca.uol.com.br/filmes_detalhes.php?idf=10432
- http://www.cineclick.com.br/criticas/index_texto.php?id_critica=9071