segunda-feira, 18 de abril de 2011

Capitães de Abril: Utopia e Revolução

Antes de mais nada, tenha o leitor em conta de que Capitães de Abril narra uma história de amor. Nada mais estranho, dirão alguns, pois não há Revolução que se levante sem uma grande declaração de amor ao seu país, ao seu povo e, sobretudo, à liberdade. E, não fosse tudo isso, falamos certamente do dia mais importante da trajetória do Portugal moderno.

Entretanto, o filme de Maria de Medeiros pode ser melhor compreendido se cotejado com um outro: Bom povo português, exibido em São Paulo, pela TV Cultura, há alguns anos. Ambos propõem uma memória da revolução dos cravos. O primeiro, preso ao dia 25 de abril, revela a generosidade dos oficiais que derrubaram uma ditadura de quase meio século. Não é por outro motivo que seu herói é o capitão Salgueiro Maia (aquele que não quis o poder). O outro, à moda dos documentários russos dos anos 20 e 30, subverte o seu próprio gênero, dando um tom cômico aos personagens, distorcendo a realidade aparente para revelar a subjacente. Afinal, como dizia o velho Marx, se essência e aparência fossem idênticas toda a ciência seria supérflua.

Bom povo português não se fixa num dia, mas num processo. No fim, vemos outro herói do 25 de abril, o major Otelo Saraiva de Carvalho, assistindo ao poder que sonhara distribuir ao povo voltar às mãos dos profissionais. Não por acaso, este filme foi praticamente banido de Portugal. Seu herói é o povo português, indiferente quase aos acontecimentos da superfície política na sua eterna e recorrente vida cotidiana. É no mínimo incômodo mostrar o rosto de Otelo, este anti-herói que arriscou tudo pela revolução e, anos depois, foi condenado a 15 anos de prisão... Talvez não menos incômodo seria o filme de Maria de Medeiros se os expectadores soubessem das perseguições sofridas pelo Capitão Maia depois de abril... A historiografia (e talvez eles mesmos) preferiria vê-los como pólos antagônicos.

O filme de Maria de Medeiros, embora não fale diretamente de Otelo (que estava, com outros oficiais, no posto de comando da Pontinha, controlando todas as ações do 25 de abril com o codinome Óscar) mostra o que os une. Fala do que ligou todos os capitães: não a política, mas o sentimento. Sua história procura ser fiel aos acontecimentos. Desde o momento em que os chaimites param no sinal vermelho (pois a revolução respeitou as leis!) até o momento em que dois capitães são confundidos com pides (agentes da antiga polícia salazarista), embora essa história realmente tenha acontecido com Otelo e não com Maia...


Mas não deixa de ter o olhar particular da autora, como ela mesma o confessa, no filme, através da menina que declara seu eterno amor ao herói Salgueiro Maia. E da mulher que, na condição de diretora, apostou nas palavras de ordem das mulheres portuguesas, estas já tão mitigadas após décadas de repressão. Não estamos, por certo, muito distantes do Maio de 68, de modo que a Paris da possibilidade, a Eutópia dos reprimidos, já era anunciada logo no primeiro diálogo do filme, na noite anterior à Revolução. Momento emblemático deste dia, viria a ser o flagrante deste mesmo casal, ao ser surpreendido fazendo amor dentro de um chaimite. Talvez a imagem mais próxima para a explosão revolucionária registrada por Maria de Medeiros tenha sido a resposta de Goethe à revolução de julho de 1830, na França: "O vulcão explodiu, tudo está ardendo, não haverá mais negociações".

E este é um grande evento de uma outra história "ficcional" que encontramos no filme. A da guerra que uniu e desuniu um homem e uma mulher. Encanta e deixa um sentimento de perda. Mas ela serve para falar de outro sentimento: a revolução por si só foi um ato de amor numa sociedade que reproduz a solidão. Foi a busca de valores autênticos onde eles não existem. Mas de fato eles existiram por alguns meses em Portugal. Talvez, como diz o herói do filme, apenas para que os inimigos se tornassem menos visíveis. 


Lincoln Secco é doutorando em História Social pela FFLCH-USP 
Marisa M. Deaecto é doutoranda em História Econômica pela FFLCH-USP

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